Reabilitação, reeducação, ressocialização, reinserção social e outros res são termos equivalentes para designar a pretensão dos discursos bem intencionados com vistas a alcançar os fins da chamada terapia penal: devolver a pessoa presa à sociedade para que ela possa ser um cidadão útil e produtivo.
Contra todas as teorias que apregoam a finalidade punitiva da pena, sucessivas pesquisas têm demonstrado que a experiência precoce da punição (ADORNO, 1986; SILVA, 1998) é um fator de retro-alimentação da reincidência carcerária.
Na prisão, as possibilidades de se alcançar os objetivos da terapia penal ainda são, no imaginário coletivo, majoritariamente relacionadas ao trabalho, à aquisição de uma profissão e à obtenção de um emprego após a liberdade. José Pastore e Márcio Pochman são dois produtivos pesquisadores que desvendam a complexidade das relações de trabalho e não relutam em apontar para a crescente limitação do trabalho enquanto elemento estruturador do modo de vida na atualidade.
Eu mesmo, no livro O que as empresas podem fazer pela reabilitação do preso (SILVA, 2002), prefaciado por José Pastore, fui investigar o que se faz em termos de oferta de postos de trabalho dentro das prisões brasileiras e o que este significa na elaboração de um futuro projeto de vida para o preso após a sua liberdade. Minhas conclusões são plenamente corroboradas pelos estudos de Pastore e de Pochman, com as agravantes de que, além da incipiente qualificação profissional oferecida pelo trabalho realizado no interior das prisões, a remuneração não representa um justo pagamento pela força de trabalho utilizada, não há qualquer preocupação para a construção de uma cultura do trabalho e o peso do preconceito pelos antecedentes criminais quase que eliminam as chances de um emprego formal com benefícios sociais e trabalhistas adicionais.
Em segundo lugar, no imaginário coletivo, a Educação aparece como o método mais preconizado para a reabilitação de presos.
Diferentemente do trabalho, a Educação não comporta impeditivos para a reconstrução da vida em liberdade, mas a questão é: porque ela não apresenta resultados eficazes na maioria dos estabelecimentos prisionais existentes ao redor do mundo?
Se o objetivo primordial da Educação é o desenvolvimento da pessoa humana, seria de esperar que ela tivesse especial significado no meio penitenciário. Não obstante, salvo raras exceções, ela não tem surtido efeitos neste meio nem tem sido seriamente considerada como instrumento de reabilitação penal.
Muitos estudos, desde pesquisas acadêmicas, observações diretas por parte de educadores profissionais, relatórios produzidos por investigações judiciárias e parlamentares até monitoramentos realizados por entidades de defesa dos direitos humanos, assinalam que os programas educativos em estabelecimentos penitenciários são inadequados, de baixa qualidade e de pouca freqüência por um único motivo: incompatibilidade entre os objetivos e metas da Educação e os objetivos e metas da pena e da prisão.
Esta incompatibilidade não é de ordem epistemológica, ainda que se possa afirmar que a condição de confinamento prolongado, a necessidade de rápida adaptação a um ambiente hostil marcado pela cultura da violência e a perda de referenciais de valor seja capazes de suscitar outras formas de saberes e de produção de conhecimentos.
A incompatibilidade também não é de ordem metodológica. Paulo Freire (1995) e Moacir Gadotti (1993), quando convidados a refletir sobre o tema, não hesitaram em refutar esta hipótese, alertando que a pretensão de se criar um método exclusivo ou próprio para a educação de presos só acentuaria a sua discriminação.
A incompatibilidade, diria eu, é de ordem conceitual. Enquanto prevalecer a concepção de prisão como espaço de confinamento, de castigo, de humilhação e de estigmatização social, a Educação não terá lugar na terapia penal, limitando-se a ser, como efetivamente é, apenas mais um recurso a serviço da administração penitenciária para ocupar o tempo ocioso de alguns poucos presos e evitar que se envolvam em confusões.
A Educação é marcada pela intencionalidade e para isto se serve do espaço, do tempo, da progressividade dos conteúdos, do método, da didática, do controle e da avaliação e visa alcançar seus objetivos em médios e longos prazos.
Desenvolvimento dos domínios cognitivo, afetivo, psicomotor e da sociabilidade, que são os objetivos da Educação, segundo definição de Bloom (1974), são perfeitamente compatíveis com os objetivos da terapia penal, mas requerem condições que favoreçam o afloramento de habilidades e competências que precisam, posteriormente, serem continuamente exercitadas.
O desenvolvimento dos objetivos educacionais exige também a adoção de certos tipos de procedimentos e visam alcançar determinados resultados que são expressos, por um lado, em habilidades para analisar, julgar e tomar decisões e, por outro, são determinantes da qualidade da interação social que o indivíduo estabelece, exatamente o que se pretende com a pena de privação da liberdade, ou seja, levar o indivíduo ao arrependimento, avaliar a conseqüência de seus atos e devotar respeito às demais pessoas.
Faz-se imperativo então fomentar um diálogo entre a Educação e as outras áreas de conhecimento que incidem sobre a execução penal, principalmente as Ciências Jurídicas, essencialmente normativa, de onde provêm os parâmetros, tanto para a arquitetura prisional quanto para os regimes disciplinares e as exigências de segurança dos estabelecimentos penitenciários.
Do ponto de vista arquitetônico a prisão deve diminuir a sensação de confinamento que lhe é característica, provocando alienação em relação ao tempo, ao espaço e rupturas com os símbolos de referência que organizam a estrutura afetiva e emocional do preso.
Do ponto de vista da segurança, esta deve incluir a segurança de quem está dentro da prisão e não apenas a segurança externa da sociedade, pois esta sensação de insegurança se traduz, para o preso, em percepção de injustiça, de inconformidade com a pena aplicada e de desejo de vingança pelas humilhações sofridas.
Finalmente, do ponto de vista disciplinar, esta deve favorecer o estudo, a reflexão crítica, o debate de idéias e a problematizarão a condição existencial do preso e não apenas focalizar a obediência, a submissão e o exercício da autoridade.
Roberto da Silva - é pedagogo, mestre e doutor em Educação, professor do Departamento de Administração Escolar e Economia da Educação, da Faculdade de Educação da Universidade de São Paulo. Foi membro do Conselho Estadual de Política Criminal e Penitenciária do Estado de São Paulo, consultor científico do Instituto das Nações Unidas para Prevenção ao Crime e Tratamento da Delinqüência (Ilanud) e atualmente é consultor da Organização dos Estados Ibero Americanos (OEI) para Educação em prisões.
Foto: Projeto de Leitura ( Complexo Lemos Brito)
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